SOCIEDADE, DEMOCRACIA E ESTADO!

Roberto da Matta, antropólogo de reconhecida competência na avaliação do quadro de referências da sociedade brasileira, buscou estabelecer uma relação direta entre cultura e democracia. Na verdade, a relação é muito forte e compreende o amplo espectro de manifestações que externalizam costumes, mores, valores, idéias, símbolos, conceitos e preconceitos. Essa ampla gama de exteriorizações da cultura, talvez dificulte apreender a relação entre a cultura e o exercício e o funcionamento da democracia. Provàvelmente fique mais fácil e menos difusa, se se buscar estabelecer a correlação entre democracia e educação.
E educação, tomada não apenas no “strictu sensus” mas, efetivamente, no “latu sensus”, envolve, não apenas a educação formal, mas hábitos e costumes experimentados por aqueles que fazem a sociedade. Trata-se, pois, de um conceito abrangente de educação cívica, na proporção em que a idéia de que o direito de um só vai até onde não afronte o direito do outro ou que existem não apenas os direitos concretos mas também os chamados direitos difusos, além, é claro, de alguns elementos mais amplos e mais complexos, nessa relação.
Dessa forma, não cabe a um cidadão apenas respeitar os direitos de cada um de per si, bem como os direitos da coletividade além de ter a clara consciência de que, o contrato social a que ele aderiu e, sob o qual ele está subordinado, exige dele uma ética de responsabilidade e de compromisso, cabendo-lhe o papel, também, de fiscalizar se o seu próximo respeita os direitos, as regras de convivência e as exigências de uma vida comunitária.
Quando se diz que a democracia depende, para que opere, a contento, através de suas instituições, da educação, isto se deve ao fato de que, só a educação permite que se processem escolhas e alternativas que se enquadrem e correspondam aos valores estabelecidos pelo pacto social.

Se a operação da democracia depende, não só e, primordialmente, da educação, as limitações, os atrasos e as precariedades de uma sociedade, tanto os culturais e os históricos, sem valores não cristalizados e, marcada pelas tradições de um estado unitário, autoritário e centralizador, a tendência é que o exercício da cidadania fique frouxo e, não se estabeleçam relações confiáveis não só entre poderes mas, também, entre os vários segmentos da sociedade civil. Aí se tem uma sociedade civil não organizada, não representada, polìticamente, sem grupos de pressão estruturados e marcada por uma classe média inexpressiva, amorfa e inorgânica.

Por outro lado, a inexistência de uma federação e a pouca expressão do poder local, como a força motriz do processo de organização do estado, deixam pouco espaço para o exercício da representação político-parlamentar legítima e efetiva, gerando as contradições experimentadas pelo atual do Congresso Nacional. E, até o singular fato dos cidadãos não saberem em quem votaram no último pleito bem como o péssimo conceito que tem da classe política, face a inexistência de partidos ou a própria proliferação de siglas sem ideologia, doutrina ou programa efetivo, tudo isso faz com que não haja compromissos entre o o eleitor e o seu suposto representante.
Por outro lado, a forma como se estrutura, como se rege, como são escolhidos os seus membros e como funciona o poder judiciário, faz com que a justiça só chegue, em tempo hábil e oportuno, para alguns poucos privilegiados, sendo lenta, lerda, cara e preconceituosa, além de outros vícios que não vale à pena mencionar.

Em assim ocorrendo, o processo democrático, dada a fragilidade de suas instituições, a ilegitimidade de partidos e de suas representações, além de não se fazerem presentes mecanismos que garantam que as decisões tomadas pelos poderes da República, estejam marcadas pelo respeito a valores e aspirações dos cidadãos, a tendência é que, essa desqualificação do processo conduza a que se tenha, também, uma gestão das coisas do estado, marcada por uma série de vícios, contradições e precariedades. O próprio centralismo fiscal observado no Brasil, gera a ilegitimidade das intervenções do Poder Central nos estados e nos municípios, pela distância de quem toma as decisões do objeto da intervenção.

Ademais, sendo o controle do poder público não subordinado a qualquer proposta de coalização partidária para garantir a governança requerida, a tendência é que ocorra o desrespeito ao princípio da meritocracia, a qualquer preoocupação com a eficiência e que haja um descompromissamento com qualquer dos objetivos estabelecidos para com as instituições.
Ou seja, além de inexistir planejamento de longo prazo, não profissionalização da administração, o descompromisso com qualquer princípio de mérito e o descaso com a responsabilidade dos dirigentes — a impunidade prospera — as questões objeto da ação do governo, não são sequer acompanhadas, quanto mais avaliadas.
Sendo assim, vive-se uma administração pública caótica inclusive pela falta de visão de longo prazo e de uma proposta de planejamento estratégico de longo prazo. Claro que, algumas vezes ocorre, aqui e acolá, a existência de uns poucos nichos ou verdadeiros oásis, onde sucessos gerenciais são alcançados, o mérito é respeitado e os gestores são capazes e sabem o que querem e para onde vão.
Mas, no todo, a democracia não opera, nem sequer no respeito a coisas mais comezinhas como não jogar lixo nas ruas, desrespeitar faixa de pedestres, estacionar em local proibido, acreditar que as coisas só operam com propinas, buscar o jeitinho para burlar a lei, desrespeitar a fila, entre outras pequenas contravenções.
Alguém poderia observar que, durante longos períodos de vida subordinados a um estado autoritário, as práticas democráticas da sociedades seculares ainda não se consolidaram, as instituições ainda não amadureceram e a instabilidade é própria desse processo de amadurecimento do processo.
Mas, para muitos, a falta de educação de base e a sua pobreza na avaliação da sua qualidade; uma classe média ainda pequena, inorgânica, omissa e amorfa; o fato de a justiça não operar, pelo menos, razoàvelmente, sob os vários critérios que se busque analisar; uma mídia ainda muito precarizada pela mistura de interesses políticos, comerciais e particulares, dos seus conglomerados econômicos; um Parlamento onde não se tem partidos, nem políticos e nem independência e autonomia; e, um
Executivo técnica e profissionalmente despreparado, não planejado, incompetente, centralizador e autoritário, fazem os ingredientes para demonstrar que falta ainda muito para que se possa dizer que, no Brasil, vive-se uma democracia.